edições experimentais de pequena ou nenhuma escala




Trabalhar Dói


Autor: David Frayne
Tradução: Lucas Pretti

︎︎︎ Originalmente publicado em 2015 com o título Working Pains, segundo capítulo do livro The Refusal of Work: The Theory & Practice of Resistance to Work, editado pela Zed Books, Londres.

︎ Última atualização: 14 ago 2022


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“Odiávamos o lugar e desprezávamos tudo o que aquilo significava, mas ainda assim morríamos de medo de sermos ‘liberados’ num vácuo econômico em que sofreríamos para conseguir trabalho e teríamos que nos apresentar a outros patrões com o mesmo entusiasmo, compromisso e flexibilidade. Eu normalmente chegava ao armazém de manhã sentindo uma mistura de alívio por ainda ter emprego e frustração porque o lugar não tinha de alguma forma desaparecido durante a noite.”
- Ivor Southwood - Non-Stop Inertia (2011)

Estudiosos das ciências humanas e sociais há tempos analisam os custos espirituais do trabalho, e ao longo do caminho o tema ganhou mais complexidade graças ao depoimento dos próprios trabalhadores. O livro Working, publicado em 1972 por Studs Terkel, merece menção por ser uma grande compilação sobre o dia-a-dia real das pessoas. Cito apenas alguns exemplos do livro. Um soldador que trabalhava na Ford, Phil Stallings, descreve sua rotina:

“A pistola de soldagem tem uma manopla quadrada, com um botão pra alta-voltagem no topo e outro pra baixa-voltagem embaixo. O primeiro é pra colar um metal ao outro. O segundo é pra fundi-los… Eu fico de pé num espaço de menos de 1 metro quadrado a noite inteira. A única hora que se consegue parar é quando a linha para. A gente faz mais ou menos 32 operações em cada carro, em cada unidade. Quarenta e oito unidades por hora, oito horas por dia. Trinta e dois vezes quarenta e oito vezes oito. Calcule quanto dá. Esse é o número de vezes que eu aperto aquele botão.” (Terkel, 2004:159)

Um metalúrgico, Steve Dubi, reflete sobre sua condição de empregado:

“Você não é reconhecido. Lá você é só um número. Tipo um prisioneiro. Na saída você fala seu número pra eles. Um monte de gente não sabe seu nome. Eles te conhecem pelo número do seu crachá. Meu número é 44-065. No escritório eles não sabem quem é 44-065… Eles só sabem que aquele ali é o 44-065.” (Terkel, 2004:554)

No Capítulo 1 deste livro[1], fiz uma provocação: e se, em vez de aceitar a sociedade centrada no trabalho como natural e inevitável, abríssemos um debate sério sobre o futuro do trabalho? Na sociedade moderna, o trabalho é a principal maneira de obter renda, formar uma identidade, contribuir socialmente e compartilhar o padrão de vida das outras pessoas, mas para muita gente o trabalho também se tornou uma fonte extremamente incerta de conseguir qualquer uma dessas coisas. Neste capítulo, continuo a argumentar a favor de uma reavaliação radical do trabalho, dessa vez focada na experiência do trabalho em si. Apesar da centralidade e do caráter sagrado do trabalho na sociedade moderna, a dura realidade é que muitas pessoas seguem enfrentando seus empregos da mesma maneira que Phil e Steve, acima: como atividades cansativas e sem sentido executadas em grande parte apenas por necessidade. Isso é algo que Marx reconheceu com seu famoso conceito de “alienação”. A partir de experiências laborais na sociedade capitalista, este capítulo sugere que, enquanto a racionalidade econômica seguir ditando os objetivos e métodos de produção, qualquer tentativa de humanizar as condições de trabalho terão efetividade muito limitada. Essa é mais uma razão pela qual a ideia de trabalhar menos, e desenvolver mais atividades e associações fora dos limites do trabalho, se mantém tão urgente.

Desengajamento e indiferença

O conceito de alienação é normalmente associado a Marx. A concepção do trabalho como “a vida das espécies” (Marx, 1959:75) foi central em sua crítica. Marx distinguia seres humanos de outros animais por nossa habilidade de transcender os limites impostos à vida pela natureza e, em um processo consciente de auto-expressão, de criar um mundo de objetos artificiais. Diz-se que, através do trabalho, os seres humanos reconfiguram o mundo natural propositalmente, e assim ampliam as possibilidades de sobrevivência da espécie: “a humanidade está constantemente remoldando a natureza, e, com cada alteração, consegue alcançar novas formas e graus de satisfação” (Ollman, 1971:101). Foi sobre essa ideia moral de autorrealização através do trabalho que Marx desenvolveu sua crítica ao trabalho no sistema capitalista. Em O Capital, Marx escreveu que a possibilidade de satisfação através de atividades produtivas foi sendo sufocada pelas formas do trabalho industrial, que “mutilam os trabalhadores e os tornam fragmentos humanos, os rebaixam a um nível de apêndice de máquina, destróem qualquer remanescência de prazer no trabalho, transformando-o em uma labuta odiosa” (Marx, 1906:708). Marx acreditava que o trabalho deixou de ser uma expressão da necessidade humana de transformar o mundo ao redor para agora ser executado sem prazer, sem motivação de sobrevivência. Em outras palavras, se tornou uma atividade alienada. Num trecho bastante citado dos seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos, Marx sugere que o trabalho alienado carrega uma experiência de distanciamento:

“Em seu trabalho… [quem trabalha] não se afirma mas se nega a si próprio, não se sente contente mas infeliz, não desenvolve livremente suas energias físicas e mentais mas tortura seu corpo e arruina sua mente. O trabalhador, portanto, só se sente ele mesmo quando está fora do trabalho, e no trabalho se sente fora de si mesmo.” (Marx, 1959:72).

Não é necessário endossar completamente a filosofia de Marx sobre a natureza humana para usar o termo alienação. É suficiente reconhecer que o ato de trabalhar representa uma oportunidade em potencial para a criatividade e a colaboração, e para experimentar satisfação e um sentido de conexão com o mundo, mas que o trabalho é frequentemente organizado de maneira a desvincular essas características. A partir de  Marx, o conceito de alienação tem sido usado de diversas maneiras para descrever o senso de indiferença que quem trabalha sente em relação ao que faz. Autores como Robert Blauner (1964) e Harry Braverman (1974), por exemplo, articularam o conceito de alienação no contexto do dia-a-dia nas fábricas. Um tema recorrente nesses textos, assim como na crítica do próprio Marx, são os efeitos da alienação na divisão do trabalho. Levada a extremos na sociedade capitalista, a divisão e subdivisão do processo produtivo são vistas como meios de aprisionar cada trabalhador em uma função restrita, diminuindo sua área de responsabilidade, drenando sua criatividade no trabalho, e privando-o de qualquer relação significativa com o produto final. O uso intensivo de tecnologias mecânicas também foi alvo da crítica por limitar as habilidades dos trabalhadores, reduzindo-os a meros supervisores ou apêndices de máquinas.

Conforme muitos críticos apontam, essas técnicas encontraram sua expressão máxima no Taylorismo: o famoso conjunto de protocolos organizacionais desenvolvido pelo engenheiro norte-americano Frederick Taylor no fim do século XIX. A busca inescrupulosa do capitalismo por eficiência e lucro se traduziu na proibição aos trabalhadores de tomar qualquer decisão sobre o fluxo ou as técnicas usadas no processo de trabalho. O desenvolvimento do Taylorismo foi aperfeiçoado pela linha de montagem móvel de Henry Ford, que despejava carros Modelo T idênticos numa taxa de produção muito eficiente, mas não sem custos mentais significativos para os trabalhadores. Quando qualidades unicamente humanas como a iniciativa, a criatividade e a cooperação foram expelidas do processo de trabalho, dizem os críticos que o trabalho nos condenou a não mais agir como seres humanos, mas como unidades de poder laboral impessoais e substituíveis. Isso foi satirizado brilhantemente por Charlie Chaplin em seu filme de 1936, Tempos Modernos, em que se via Chaplin (um trabalhador em linha de montagem) transformado pelo trabalho em um autômato maníaco espasmódico. Para manter a velocidade e a precisão mecânicas, Chaplin foi forçado a se tornar uma máquina.

Dadas as transformações laborais desde o período industrial, obviamente o exemplo de Chaplin soa arcaico. Não podemos falar em alienação sem considerar a transição no Ocidente do modelo econômico industrial ao pós-industrial, em que os trabalhadores cada vez mais executam serviços ou manipulam informações em vez de manufaturar bens materiais. Se os críticos marxistas achavam que o trabalho industrial sufocava as capacidades dos trabalhadores, o contexto mudou na segunda metade do século XX, quando muitos estudiosos deram boas-vindas à era do trabalho pós-industrial com certo tom de empolgação. Futurologistas previram o advento de uma nova “economia do conhecimento”, que proporcionaria a transformação do velho trabalho manual automatizado em trabalhos inteligentes nas indústrias de serviços e de tecnologia (Bell, 1973). Hoje é um clichê político, mas a noção de uma nova “economia do conhecimento” foi de início muito celebrada por economistas e sociólogos nos anos 1960, quando se acreditava que a prosperidade das nações no futuro dependeria da habilidade de produzir mão-de-obra inteligente e bem informada para uma nova era laboral. Modelos de emprego pós-industriais prometiam reintroduzir o “fator humano” no trabalho, cujas funções não se resumiriam simplesmente a eficiência e obediência, mas agora se baseariam nas mais distintivas qualidades humanas como competência social, habilidade cognitiva, experiência prática, ou consciência responsável, e ofereceriam às pessoas que trabalham novas oportunidades de se sentirem moralmente envolvidas com suas atividades laborais (Offe, 1985:137-8).

Com o benefício de uma visão retrospectiva, alguns críticos questionam essas afirmações sobre a florescente economia do conhecimento (Thompson et al., 2001). Embora a proporção estatística de vagas nas indústrias de serviços e tecnologia tenha sem dúvida crescido, precisamos ter cuidado antes de aceitar essa tendência como uma evidência da transição a um mundo laboral mais humano e especializado (ver Fleming et al., 2004). A análise de certas categorias ocupacionais não é suficiente para revelar como determinados tipos de trabalho são realizados na prática, e as estatísticas não consideram os aspectos mais mundanos de cada labor. Trabalhadores que estão hoje em frente a seus computadores executando as mesmas tarefas todos os dias podem ter a mesma relação com seu trabalho que tinham os trabalhadores alienados da indústria. Parece que a empolgação com a nova era do trabalho pós-industrial subestimou radicalmente o potencial das tecnologias informáticas em estandardizar o trabalho na era digital. Em muitos locais de trabalho atuais, as tecnologias não servem para desenvolver habilidades, mas para forçar os trabalhadores a níveis extremos de controle sob um ritmo intenso. Estudos sobre um tipo clássico de trabalho de hoje, o call-center, descrevem muitas práticas que se tornaram padrão. Operadores ativam ligações de entrada e saída diretamente nos fones de ouvido dos empregados, sem permissão de pausas entre chamadas. Softwares de monitoramento coletam dados sobre a produtividade de cada trabalhador, e enviam relatórios sobre atrasos ou baixa produtividade diretamente aos gerentes, para então encaminhar os casos problemáticos a processos de coaching vergonhosos ou outras medidas disciplinares. Um estudo descreve um call-center moderno como um “panóptico eletrônico” (Fernie e Metcalf, 2000), enquanto outro se refere à “linha de montagem dentro da cabeça do trabalhador”, ciente de que a finalização de uma tarefa levará ao início imediato de outra (Taylor e Bain, 1999). Em 2013, houve uma polêmica pública envolvendo as condições de trabalho do pessoal de armazém da megastore online Amazon (os “coletores”, ou “pickers” em inglês). Computadores de mão são usados para manter os trabalhadores de baixa escala se arrastando por armazéns gigantes em rotinas limítrofes irracionais, escaneando e processando pedidos. Um repórter investigativo escreveu: “Nós somos máquinas, somos robôs, plugamos e seguramos nosso scanner, mas poderíamos muito bem plugá-los a nós mesmos” (BBC News, 2013).

Richard Sennett exemplifica bem os efeitos da computadorização em um caso de estudo sobre uma padaria moderna (Sennett, 1998). Na padaria que Sennett estudou, para fazer pão não era preciso misturar e sovar, mas sim manipular ícones em uma tela de computador. Os trabalhadores não precisavam ter qualquer conhecimento real sobre o processo de cozimento, nem tinham qualquer chance de tocar os pães que faziam. Sennett escreveu que o processo de trabalho, codificado em máquinas automatizadas, havia se tornado opaco e “ilegível” para os trabalhadores, que logo não conseguiam desenvolver uma cultura ou qualquer sentido de orgulho em relação a seus trabalhos. Os trabalhadores, ele escreveu, são “bastante conscientes do fato de que estão executando tarefas simples e mecânicas, e fazendo menos do que sabem fazer” (Sennett, 1998:70). Em sua descrição sobre os padeiros, Sennett resistiu em usar o termo alienação no sentido marxista tradicional, em que a palavra representa a faísca que inflama a luta dos trabalhadores; em vez disso, sugeriu que os padeiros se tornaram simplesmente indiferentes a seu trabalho. É significativo que o processo de computadorização e desqualificação que Sennett descreve pode ser observado inclusive nos trabalhos mais cobiçados de hoje em dia. Mesmo em cargos altos e especializados, o conhecimento pode ser encapsulado em processos eletrônicos manuais que mapeiam cada procedimento até o último detalhe, ou em programas semi-automáticos que executam tarefas com um mínimo de intervenção humana (Brown et al., 2011). A computadorização do processo laboral, que possibilita executar tarefas sem as habilidades e iniciativa que um dia já foram necessárias, pode ter um efeito devastador sobre a cultura de trabalho, deixando muitas pessoas desinteressadas ou sem vínculo com os trabalhos que executam. Formas modernas podem até ser mais limpas e silenciosas que o trabalho industrial, mas fica claro que ainda estão presentes muitas das fontes de insatisfação de antes.

A nova intimidade do trabalho

O termo alienação foi tradicionalmente usado para descrever o sentimento de não pertencimento ou de indiferença que os trabalhadores sentem sobre o que fazem – uma tendência predominante tanto hoje, na era do trabalho computadorizado, quanto nos dias da linha de montagem de Ford. No entanto, no século XXI também se vê a normalização de uma nova forma de alienação. Essa nova forma é caracterizada não pela exclusão das qualidades humanas do processo laboral, mas, ao contrário, pelo envolvimento e exploração dessas mesmas qualidades. O problema agora não está em dar oportunidades para que os trabalhadores se expressem e se identifiquem, mas na expectativa do empregador de que os empregados estejam completamente envolvidos e dedicados entusiasticamente ao trabalho. As discussões sobre essa nova forma de alienação se devem ao clássico estudo White Collar (Mills, 1956), de C. Wright Mills, ainda que os debates tenham sido subsequentemente popularizados por Arlie Hochschild e sua teoria do “trabalho emocional” (Hochschild, 1983). Em essência, ambos autores fazem a mesma pergunta: quais as consequência de pedir expressamente aos trabalhadores que tragam suas emoções e sua individualidade ao trabalho, ao invés de deixá-las em casa pela manhã?

No livro The Managed Heart (1983), Hochschild sugere que, para se integrar à sociedade, as pessoas precisam administrar suas emoções. Precisamos, por exemplo, demonstrar gratidão após desembalar um presente que julgamos ruim, ou tentar esconder a vontade de rir quando acontece algum infortúnio a um amigo. No mundo social, somos constantemente requeridos a trabalhar nossos sentimentos para expressar a emoção socialmente correta ou, como coloca Hochschild, para satisfazer as “regras emocionais” culturalmente negociadas de uma dada situação. A teoria de Hochschild é relevante para as experiências laborais dos dias de hoje, já que a habilidade de performar emoções têm cada vez mais valor comercial. Os exemplos mais óbvios estão nas indústrias de serviços, em que o gerenciamento de emoções é um elemento essencial de cada tarefa. Os trabalhadores de serviços precisam constantemente “induzir ou esconder emoções para aparentar um semblante que produza um determinado estado de espírito nos outros” (Hochschild, 1983:7).

Hochschild desenvolveu essa concepção com um estudo sobre o trabalho de aeromoças no começo dos anos 1980. Ela descobriu que, para prestar um bom serviço, as comissárias recebiam treinamento intensivo e aprendiam a adotar o comportamento emocional considerado apropriado. As estagiárias eram instruídas a demonstrar uma personalidade calorosa, espírito de entusiasmo e um “alto caráter moral” (Hochschild, 1983:97). A publicidade das empresas aéreas prometia aos clientes um voo tranquilo, e as aeromoças eram ensinadas a seguir técnicas de administração da raiva para mantê-las prestativas aos passageiros. Hochschild argumentou que a tentativa dos gerentes de ditar o comportamento afetivo dos empregados constituía um tipo de estandardização emocional ou Taylorismo: “o trato social é forçado a canais muito apertados; pode até haver esconderijos ao longo da costa, mas há muito pouco espaço para nadar individualmente pelas águas da emoção” (Hochschild, 1983:119). O sistema emocional privado passou a ser governado pela lógica comercial, e abandonou-se o direito da trabalhadora de comandar as interações sociais segundo sua própria conduta emocional. É possível comparar essa situação com a de muitos trabalhadores do varejo de hoje em dia, muitos dos quais são treinados para simular simpatia ou recebem roteiros passo-a-passo em seus computadores, indicando como devem interagir com consumidores[2]. Esse processo de adotar regras emocionais é normalmente reforçado com um aparato disciplinar elaborado, com câmeras de vigilância, “consumidores falsos”, mecanismos de reclamações e avaliações, tudo operando ao mesmo tempo para manter o funcionário dentro do comportamento previsto.

As principais preocupações de Hochschild eram os efeitos potencialmente estressantes ou psicologicamente entorpecentes desse trabalho emocional. As demandas diárias de separar os sentimentos (internos) da performance social (externa) eram vistas como fontes de tensão mental.  Essa tentativa de controlar cada interação dos trabalhadores também pode se considerar como um tipo de violação pessoal, já que o trabalho emocional conta com um aspecto fundamental da nossa individualidade, de nós mesmos” (Hochschild, 1983:7). O sorriso forçado para um cliente estranho, a raiva reprimida contra um chefe rancoroso, as demonstrações de entusiasmo necessárias para se dar bem – esses pequenos sacrifícios pessoais vão se empilhando, causam fadiga mental e talvez até comprometam a noção que cada trabalhador tem sobre si mesmo. A chegada da indústria de serviços parecia significar que as capacidades humanas seriam reintroduzidas nos processos laborais, mas, ao contrário, Franco Berardi sugere que o trabalho emocional (ou o que ele chama aqui de “cognitivo”) é na verdade atuação dramática:

“O trabalho cognitivo é essencialmente um trabalho de comunicação, quer dizer, de colocar a comunicação para trabalhar. De um certo ponto de vista, isso poderia ser uma experiência mais enriquecedora. Mas é também (em regra geral) empobrecedora, já que a comunicação perde seu caráter de contato gratuito, prazeroso e erótico, tornando-se uma necessidade econômica, uma ficção triste.” (Berardi, 2009:87)

Na minha opinião, um dos exemplos mais provocativos dessa ficção triste de Berardi pode ser encontrado no livro Dead Man Working, de Cederström e Fleming (2012). Os autores comentam um documentário da BBC realizado por Louis Theroux, que seguiu o dia-a-dia de algumas jovens mulheres que vivem e trabalham num bordel em Nevada, nos EUA. No documentário, o cliente que as mulheres mais temem é Hank, um homem aparentemente gentil e amável cuja característica mais notável é que, na verdade, ele nunca quer fazer sexo com as trabalhadoras. Cederström e Fleming sugerem que as mulheres odiavam Hank mais que os outros clientes porque ele exigia mais do que um desempenho superficial em troca de dinheiro. O que Hank comprava em cada visita ao bordel era uma forma de “interpretação profunda”, como coloca Hochschild: ele está relativamente desinteressado nos corpos e na aparência; o que ele quer é uma noite com uma namorada autêntica, com beijos, carinhos e conversas sobre o futuro. Isso é trabalho emocional em seu grau mais intenso.

A prostituição emocional é um exemplo extremo, sem dúvida, mas não é preciso muita imaginação para comparar a experiência de exaustão das “namoradas” de Hank com as experiências de muitos trabalhadores cuja função é criar um estado emocional determinado em outras pessoas. Afinal de contas, o vocabulário de resistência ao trabalho vem sendo muito frequentemente vinculado à ideia de prostituição: “vender a si mesmo”, “vender sua alma”, “render-se”, etc. Quando são forçados a adotar os valores da empresa ou do consumidor, muitos trabalhadores têm medo de se sentirem inautênticos ou indignos, o que normalmente ocorre. O alcance dessa nova forma de alienação é aparente quando constatamos que os riscos do trabalho emocional não estão circunscritos apenas aos trabalhadores de serviços. A disciplina corporal sujeitava os trabalhadores da era industrial, mas seus pensamentos e emoções importavam pouco desde que não atrapalhassem o desempenho. Nas formas de trabalho imaterial da atualidade, porém, em que não é tão simples quantificar os resultados de uma determinada tarefa, é cada vez mais difícil avaliar corretamente a produtividade de cada trabalhador. Como resultado, julga-se cada vez mais pelo “temperamento” (Gorz, 1999:39-44; Weeks, 2011:69-75). O bom trabalhador é aquele que demonstra domínio sobre as regras sociais de profissionalismo, com comprometimento, entusiasmo e alinhamento aos objetivos da organização. Já que é objetivamente tão difícil identificar qual trabalhador é mais produtivo, o melhor empregado é o mais inspirador, empático, dinâmico e o mais querido pela equipe.

Catherine Casey dedicou um estudo de caso à cultura do alto comprometimento em empresas capitalistas, quando analisou a Hephaestus (pseudônimo), uma das 500 corporações mais importantes do mundo segundo a Fortune (Casey, 1995). Os diretores da Hephaestus se esforçavam para promover um ambiente de trabalho solidário e coeso como na cultura industrial, mas, como em todas as corporações modernas, também queriam que as regras fossem suaves e insuspeitas, para reduzir possibilidades de conflito. Casey afirma ser comum o investimento de  somas consideráveis de dinheiro para incentivar os trabalhadores a se alinharem aos valores e identidades da organização. Em outras palavras, os empregados têm sua identidade transformada em “o pessoal da firma”. Na Hephaestus, usava-se uma retórica organizacional para promover a identificação com o trabalho, com termos como “time” e “família”, criados para incentivar os trabalhadores a desenvolver um sentido de devoção e de obrigação pessoal. Conceitos como “time” e “família” serviam para ressignificar o ambiente de trabalho como um local de obrigação ética, e não econômica, aprofundando a ligação dos trabalhadores com as metas da empresa. Casey escreve que o trabalhador arquetípico da Hephaestus era aquele que “trabalha duro, é dedicado, leal e comprometido com a empresa e seus produtos, e está disposto a dar tudo pela empresa e pelo seu time” (Casey, 1995:127). Os empregados respondiam a essa obrigação com trabalho emocional, um esforço cuidadoso em controlar sua linguagem e seus comportamentos. Esses requisitos performáticos foram sintetizados de forma brilhante por um dos participantes, Jerry, que andava de um lado para o outro carregando uma pasta sem nada dentro, porque isso o fazia parecer mais profissional. Os empregados da Hephaestus também demonstravam sua lealdade trabalhando horas extras. Trabalhadores que iam para a empresa nos fins de semana queriam que seus colegas vissem seus carros no estacionamento, enquanto trabalhadores cujas obrigações familiares não permitiam que saíssem tarde ou chegassem cedo eram forçados a encenar desculpas e arrependimento pelos corredores. Uma vez que essa cultura de alto comprometimento foi estabelecida no ambiente de trabalho, era muito difícil resistir. Casey observou que a “família” e a “time” logo se tornaram um grupo de trabalhadores que não atingiam seus resultados.

É claro que os trabalhadores respondiam de maneiras diversas à cultura organizacional de alto comprometimento. No caso da Hephaestus, alguns trabalhadores conspiravam contra a cultura do ambiente de trabalho, outros se defendiam dela, e outros se rendiam conscientemente, sabendo que isso provavelmente deixaria suas vidas mais tranquilas. Independentemente das reações, porém, conforme finaliza Casey, a Hephaestus era uma empresa em que abundavam ansiedade psíquica, obsessão-compulsão e auto-repreensão. Nada disso é surpreendente: simplesmente dá substância à tão propagada cultura do medo, segundo a qual nosso trabalho nos consumirá. O que é especialmente preocupante, no entanto, é que a cultura do alto comprometimento descrita por Casey e outros não está circunscrita apenas às profissões mais bem pagas e de alto nível do mercado. Hoje, a habilidade de exibir profissionalismo é esperada também de empregados em funções pouco complexas e de baixa remuneração. No meu próprio estudo, uma pessoa (Matthew, que conheceremos nos próximos capítulos) me mostrou um anúncio de emprego para repositores de armazéns na loja de bugigangas B&M. O anúncio diz: “Se você tem ambição, ótimas habilidades pessoais e paixão pelo sucesso (como nós), você com certeza quer trabalhar na B&M!”. Não é muito provável que características como ambição e paixão sejam necessárias à reposição de estoques, mas mesmo assim o empregador lista como pré-requisitos. Um estudo de Colin Cremin sugere que essa é a tendência geral. Ele fez uma análise de anúncios de empregos no Yorkshire Post entre 1870 e 2001, e descobriu que essa linguagem foi se tornando cada vez mais um lugar-comum: “quase todos os trabalhos pedem ‘habilidades de comunicação’ e são descritos como trabalho de ‘equipe’” (Cremin, 2003).

Antes, as tentativas de estandardizar e monitorar o trabalho causavam sentimentos de distanciamento e indiferença nos trabalhadores; agora, os incentivos de obter envolvimento emocional também carregam seus riscos. Há um limite claro no quanto trabalhadores podem buscar objetivos alheios a eles quando os custos do trabalho intensivo – estresse, burnout, falta de descanso após muitas horas – são tão bem conhecidos. Numa mostra de resiliência impressionante, no entanto, muitos dos diretores de hoje em dia estão antecipando essa relutância com outra estratégia. Em nome do lucro e da produtividade, essa nova estratégia promete que os trabalhadores terão mais senso de individualidade e liberdade. O autor de um livro popular de gestão diz que “quando as pessoas estão felizes e livres para serem elas mesmas, são mais produtivas e dão mais de si mesmas” (Bains, 2007). Essa nova ética considera aspectos da personalidade de trabalhadores que antes eram barrados ou ignorados pelos chefes. “Ser você mesmo” ou “se divertir” ganham ênfase, enquanto se descrevem como cruéis e antiquadas as tentativas anteriores de criar culturas uniformes e altos níveis de identificação com os valores da empresa. Essa nova ética é algumas vezes descrita como a “ideologia californiana”, surgida no Vale do Silício, nos Estados Unidos. No Reino Unido, o melhor (embora extremo) exemplo talvez seja o cobiçado escritório do Google, que oferece relaxamento e conforto em forma de pufes, áreas de descanso e uma sala de estar com cara antiquada, criada para permitir aos empregados “trabalhar de casa” mesmo estando no escritório.

Peter Fleming e Andrew Sturday examinaram essa nova ética de diversão no trabalho em seu estudo sobre o call-center Sunray (pseudônimo) (Fleming e Sturdy, 2011). A cultura de trabalho na Sunray era definida pelo princípio 3F, digno de nota: “Foco, Diversão, Satisfação” – um slogan repetido em reuniões de equipe, durante o processo de seleção de novos empregados, e na avaliação dos funcionários. As tentativas de injetar diversão no ambiente de escritório deu origem a uma série de atividades, desde gincanas e eventos em que se deve vestir de determinada maneira, até jogos na sexta-feira à tarde ou brincar de decorar o escritório como se fosse uma selva. Anúncios de emprego da Sunray começavam com a frase “você curte festa?”, e os funcionários eram incentivados a “serem eles mesmos” e a expressar suas individualidades. É possível assumir que o direito de “ser você mesmo” significava não ter o direito de ser negativo ou infeliz. A atitude correta consiste em representar “uma personalidade positiva, saber brincar, um estado de espírito alegre e uma disposição extrovertida e relaxada” (Fleming e Spicer, 2004:82). Não se encaixam os introvertidos, as pessoas com perfis mais retraídos, ou cujo senso de humor seja mais rebelde e desobediente. Fleming e Sturday também constataram que o panóptico eletrônico do call-center, com mecanismos de controle mais tradicionais (distribuição automática de chamadas, monitoramento de performance e estrutura de gerenciamento hierárquica), ainda estava operando como sempre. Enquanto alguns dos trabalhadores entrevistados disseram que gostavam da ética 3F, outros sentiam que estavam passando por uma lavagem cerebral.

Fleming e Sturdy foram profundamente críticos em relação ao que observaram na Sunray, e argumentaram que a retórica da diversão e da individualidade no trabalho servia finalmente a dois propósitos. O primeiro era “capturar a sociabilidade” do trabalhador. Ao incentivar os trabalhadores a levar suas personalidades ao trabalho, os diretores esperavam que eles prestassem serviços mais personalizados aos consumidores. O segundo e mais preocupante era desviar a atenção do que seria considerado um processo alienante: “A razão por trás do 3F era dar uma compensação pelo trabalho duro e mundano executado pelos operadores e garantido pelos controles técnicos, burocráticos e culturais” (Fleming e Sturdy, 2011:192). É revelador que os trabalhadores não tinham permissão para “serem eles mesmos”, mas sim que eram obrigados a. A determinação paradoxal de “ser você mesmo… ou outro” confundia os próprios diretores. Numa entrevista, um diretor de recursos humanos deu um tropeço embaraçoso:

“Todas as atividades 3F são implementadas de maneira controlada e a adoção é obrigatória – ainda que incentivemos o individualismo e a criatividade… Temos uma atitude Sunray… hmm… mas as pessoas ainda podem ser elas mesmas.” (Fleming e Sturdy, 2011:191).

No fim das contas, parece que a tão elogiada ideologia californiana é um tipo de liberdade superficial e cuidadosamente aplicada, com limites estreitos. Emprestando alguns exemplos de Fleming e Sturdy: pintar o cabelo da cor que quiser, usar mini-saia, ou deixar uma prancha de surfe na sua salinha podem trazer um sentimento de liberdade aos trabalhadores, mas não ao ponto de terem liberdade para exercer influência real sobre o processo de trabalho. Além de representar uma forma superficial de liberdade, esses elementos de diversão e relaxamento podem também gerar impacto negativo ao tornar prazeroso um trabalho eticamente duvidoso. Como sugere Gorz, é possível ter um ambiente de trabalho agradável e divertido independentemente do que se produz, sejam “armas químicas ou remédios, bonequinhos ou brinquedos educacionais, pornografia ou livros de arte” (Gorz, 1985:52). No escritório “humanizado” de empresas conhecidas por explorar trabalhadores de fábrica, por deixar crianças viciadas em açúcar ou por descobrir novos mercados para a indústria farmacêutica, os gerentes de nível médio deixam de lado seus escrúpulos em nome de usar camisetas para ir trabalhar, de poder decorar sua sala, ou para aproveitar a comida gostosa do restaurante da empresa. A humanização do dia de trabalho pode trazer prazeres superficiais, mas certamente não garante que o trabalho tenha uma finalidade humana e socialmente valiosa.

Os limites à autonomia no trabalho

Acabamos de ver que, enquanto uma série de autores, seguindo Marx, descrevia as características alienantes do trabalho industrial, outros, antecipando-se às mudanças que levariam a uma nova economia do conhecimento, apostavam num futuro melhor. Pensava-se que as formas de trabalho emergentes trariam oportunidades para uma vida laboral mais humana. O que aconteceu, porém, é que as formas alienantes do trabalho mecânico ainda persistem vigorosamente na experiência laboral e na forma como se organiza o processo de trabalho em si. O Taylorismo segue na era da computadorização, pois os trabalhadores continuam a ser cronometrados, controlados e forçados a trabalhar em tarefas pequenas e repetitivas num sistema de produção focado no lucro. Além dos tipos de controle mais tradicionais, também vimos o surgimento de uma nova forma de alienação, que consiste na tentativa das corporações em engajar e explorar a individualidade dos trabalhadores. O crescimento da indústria de serviços também gerou um incremento do controle sobre a conduta emocional dos empregados. Enquanto isso, estratégias para orientar a cultura do ambiente de trabalho tentam gerar uma identificação total com o emprego e, nos lugares em que essas iniciativas chegaram ao limite, uma nova ética de trabalho tenta disfarçar o trabalho alienante com uma linguagem de liberdade e diversão. Em cada caso, o trabalho aparenta ter se tornado mais liberador e humano – oferecer às pessoas a chance de usar suas habilidades comunicativas, de desenvolver um senso de pertencimento à organização, de serem elas mesmas e se divertirem enquanto trabalham – mas, em cada caso, o trabalho parece ter se tornado mais invasivo, mais exigente em relação ao nível de envolvimento, e seus métodos de controle se tornaram mais sofisticados e abrangentes vistos sob um ponto de vista psicológico.

Contextualizo melhor esse ponto esclarecendo que as tendências que identifiquei, claro, são apenas termos gerais, e não podem ser aplicadas a todas as experiências de trabalho. Nos anos 1960, Robert Blauner reconheceu que a questão do trabalho alienante é objeto frequente de generalização. Em sua pesquisa comparativa em fábricas e outros ambientes de trabalho industrial, ele demonstrou que as experiências de cada trabalhador variam muito, tanto dentro da mesma empresa quanto entre diferentes setores, e então concluiu que é mais apropriado falar sobre “tendências alienantes” em vez de afirmar que todos os trabalhos se tornaram alienantes (Blauner, 1964). Até os críticos mais radicais do trabalho reconhecem que os empregos modernos oferecem possibilidades de expressão, iniciativa e colaboração. Gorz afirma que, mesmo quando o trabalhador não controla suas metas e métodos de produção, o trabalho ainda pode ser agradável e divertido: “a heteronomia não significa que o ambiente de trabalho é um inferno ou um purgatório” (Gorz, 1985:51).

Mas, mesmo admitindo que o trabalho moderno pode ser prazeroso e interessante, eu ainda manteria a afirmação de que a alienação segue como uma das principais raízes da angústia moderna, uma questão social que exige uma reavaliação da sociedade centrada no trabalho. Ao mesmo tempo em que pode haver gratificação no trabalho, é evidente que o acesso a funções recompensantes e significativas segue profundamente desigual, e que o caráter moral do trabalho está desbalanceado em comparação à experiência que a maior parte das pessoas têm com seus trabalhos. O problema é que a criação de trabalhos recompensantes nas empresas capitalistas não é determinada pela necessidade ou vontade humanas, mas sim pela avaliação de retorno de lucro para a empresa. Além de tornar o trabalho suportável, e portanto de fazer os trabalhadores seguirem vindo todos os dias para executá-lo, não há nada na lógica do capitalismo que o obrigue a atender o desejo humano por propósito e realização pessoal (Wright, 2010:48). Para provar esse ponto, basta analisar o colapso da aparente equidade e cooperação entre patrões e trabalhadores quando as empresas são obrigadas a cortar custos e fazer demissões. Nesses casos, recorda-se que os trabalhadores não são parte de uma família, mas sim instrumentos dispensáveis na geração de lucro privado (Gorz, 1989:64).

Podemos definir o trabalho realmente significativo como aquele em que as pessoas podem executar tarefas de acordo com seus próprios critérios técnicos, estéticos e sociais, isto é, trabalhar em consonância com suas próprias ideias de eficiência, beleza e utilidade. Uma economia capitalista impõe limites muito claros à existência desse tipo de trabalho. É certo que muitos empregadores da atualidade convocam seus trabalhadores a refletir, planejar e discutir, e a “expressar seus verdadeiros eus”, mas a autonomia permitida a qualquer trabalhador é limitada pelos objetivos gerais da organização, que são sempre definidos pela empresa e pelas forças econômicas sob as quais opera. Fleming e Sturdy afirmam que, em última análise, as tentativas de incluir o elemento humano no trabalho equivalem a uma “liberdade controlada” (Fleming e Sturdy, 2011) – um eco talvez deliberado à colocação de Gorz nos parágrafos anteriores, de “autonomia dentro da heteronomia” (Gorz, 1999). As novas formas de trabalho nos convidam a ser ativos, expressivos e colaborativos, mas apenas dentro dos limites estabelecidos pelas metas da empresa.

“O capitalismo pede [aos trabalhadores] que reflitam, planejem e discutam o que fazem, para que sejam sujeitos produtivos autônomos, mas também ordena que limitem sua autonomia dentro dos limites pré-estabelecidos e a direcionem a objetivos já definidos.” (Gorz, 1999:39)

Uma das premissas centrais da teoria social crítica e do argumento pela redução da carga de trabalho é a convicção de que o trabalho será sempre alienante até certo ponto, assim como determinadas liberdades serão sempre deixadas de fora. Mesmo que se permita aos trabalhadores algum nível de controle sobre o processo laboral da organização, Gorz aponta que normalmente não se pode questionar o valor de uso dos produtos e serviços, ou iniciar um debate sobre o impacto desses produtos e serviços na sociedade como um todo (Gorz, 1985:51). Uma autonomia genuína em nossas atividades produtivas – do tipo inflexível que Gorz defende – depende da possibilidade de ter liberdade para discutir questões mais amplas. Autonomia genuína consiste em ter liberdade de opinar sobre o que está sendo produzido, e quem se beneficia com aquilo. Consiste em ter liberdade para questionar a autenticidade e a importância das necessidades que dado trabalho foi criado para suprir (Gorz, 1999:41).

Por fim, notamos que, mesmo em casos em que os trabalhadores ganham altos graus de autonomia, um trabalho de tempo integral ainda determina que nossas capacidades e habilidades estejam focadas estritamente em um ofício em detrimento de outros. Mesmo num trabalho prazeroso, nos mantemos confinados a um papel delimitado e prescrito pelo sistema econômico, e silenciamos aquelas partes de nós que não servem à função que nos foi atribuída no processo de produção capitalista. O próprio termo papel, “emprestado do universo do teatro, sugere que o tipo de existência imposta pela sociedade não encaixa no que as pessoas são em sua integralidade, nem em tudo o que poderiam ser” (Adorno, 2001:187). Uma pessoa pode encontrar consolo temporário e chamar-se a si mesma professora, gerente de bar, ou policial, mas nenhuma dessas identidades dizem tudo sobre quem ela realmente é. Não importa quanto uma pessoa tente alcançar a auto-realização ao adotar um papel laboral, ela sempre falhará, porque – nas palavras de Renata Salecl – “sempre haverá algo dentro dela que não poderá ser definido por uma identidade externa” (Salecl, 2011:49). Culturalmente, hoje em dia aceitamos a ideia geral de que a vida laboral tem pouca ou nenhuma relação com os valores e atividades que levamos a cabo em nossas vidas privadas, isto é, de que cada um de nós tem uma versão “eu no trabalho” e uma “eu em casa”. Sendo assim, raramente o trabalho remunerado é uma experiência significativa em si mesma; sua relevância subjetiva é regulada de fora, por incentivos como salário, estabilidade e prestígio – que, em última análise, são compensações pelo sacrifício pessoal de ir ao trabalho (Gorz, 1989:35-6).

Em suma, os limites restritos em que é possível exercitar alguma autonomia no tipo de trabalho capitalista são mais uma razão para que mantenhamos a crítica ao trabalho. É evidente que seu papel central e sagrado, sua valorização como uma fonte de identidade, status e contribuição à sociedade, segue fora de sintonia com a experiência diária de um grande número de pessoas. Para muitos, o trabalho remunerado representa menos uma expressão de sua produtividade e capacidades criativas e mais um obstáculo ao desenvolvimento dessas capacidades. Se gratificação e criatividade não são adjetivos usados para definir os trabalhos remunerados da maioria das pessoas, então, sob um ponto de vista humanista e libertário, faz sentido explorar possibilidades para reduzir o tempo de trabalho e expandir o tempo de lazer. Trabalhar menos fará florescer nossos talentos e capacidades pessoais em outros ambientes, em redes informais de produção que vão mais além dos tipos de trabalho limitantes da economia capitalista.

Notas

[1] FRAYNE, D. The Refusal of Work: The Theory & Practice of Resistance to Work. London: Zed Books, 2015. Sem tradução em português. ︎︎︎

[2] Num exemplo memorável da minha própria história laboral, em uma sessão de treinamento pediu-se aos operadores de caixa para interpretar uma série de cenários de atendimento ao cliente. Trouxeram consumidores falsos e os instruíram a se comportar de maneira agressiva com os funcionários em treinamento. Sob os olhos atentos dos gerentes, que avaliavam o desempenho com notas em pranchetas, os operadores deveriam confrontar os atores-consumidores enquanto mantinham a compostura e continuavam a sorrir. Após o exercício, cada empregado foi notificado sobre seus erros em um vídeo de treinamento, que explicava as políticas de atendimento ao cliente da empresa com uma trilha sonora pop, um dos top-10 hits de Natalie Imbruglia, Wrong Impressions. ︎︎︎

Referências

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